Após os ataques de 11 de setembro de 2001, os EUA juntamente com o Reino Unido, lançaram a operação Enduring Freedom para invadir o Afeganistão, que estava sob o domínio do Talibã, onde supostamente se formava um abrigo para o terrorismo internacional e havia suspeitas de que estivessem escondidos integrantes da Al-Qaeda (grupo responsável pelos ataques do 11 de setembro) e seu líder, o bilionário saudita Osama bin Laden. Durante a invasão os americanos se uniram com a Aliança do Norte (grupo afegão de resistência ao Talibã) e, após dois meses de combate, o Talibã foi vencido e Hamid Karzai eleito presidente do Afeganistão. Passados cerca de quase 20 anos de ocupação americana juntamente com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), nos primeiros meses do segundo semestre de 2021 se observou a retirada desastrosa das tropas e a volta do Talibã ao poder, demonstrando o total fracasso de uma tentativa de exportar a democracia e impor valores ocidentais a uma cultura totalmente diferente. Dessa forma, o resultado não poderia ser outro, a política intervencionista americana ricocheteou outra vez.
O comportamento dos Estados Unidos no início da ocupação foi orientado pela visão de Bush, que pode ser resumida em sua doutrina. Primeiramente, a ‘guerra ao terror’ tem caráter preventivo, ou seja, não se deve esperar o ataque do inimigo para iniciar uma réplica, de modo que os EUA deveriam atacar sempre que houvesse alguma suspeita. Isso implica no segundo princípio da doutrina, o unilateralismo, pois se o país acredita que será atacado não deve esperar a autorização das organizações internacionais, mas agir prontamente e unilateralmente. Por fim, o princípio da doutrina que mais afetou o Afeganistão foi o da exportação da democracia, legitimado pela ideia de que as democracias tendem a não brigar entre si e, portanto, seria um dever levar a democracia a todos os povos, gerando a paz perpétua e a perfeita harmonia entre as nações. Essa ideia não só foi usada para legitimar a permanência em solo afegão, como foi levada a cabo na tentativa de construir uma democracia no país. Entretanto, a fragmentação étnica, o território montanhoso, as rivalidades constantes e a falta de experiência dos afegãos com um regime democrático representaram fatores impeditivos para o bom funcionamento do regime no país.
A população afegã é composta por grupos étnicos não homogêneos, sendo que a maioria da população (40%) pertence à etnia pachto, um grupo que segue uma versão sunita da religião islâmica e se divide em cinco grandes facções. A facção Durani, compunha uma dinastia que esteve no poder até o golpe comunista de 1978 e voltou ao poder com a instituição do governo de Hamid Karzai, pelos Estados Unidos. A segunda maior etnia do país é a dos tadjiques, que compõem 30% da população, seguidos pelos hazaras com 15%, turcomanos e uzbeques (com o menor número) somando 12%. Todavia, a divisão étnica da sociedade afegã não constitui uma estrutura fixa e nem mesmo é o principal fator de orientação política dos indivíduos, na verdade, ela se divide em grupos locais chamados de qwans. Esses grupos podem se referir “[...] a um grupo de base regional; a um grupo de pessoas com a mesma profissão; ou a um grupo de pessoas unidas em torno de um objetivo político comum, guiadas por um líder” (U.S. ARMY, 2009). Dessa forma, surgem redes de clientelismo administradas por ‘senhores da guerra’ (combatentes da época da invasão soviética), que criam redes de hierarquia e de administração locais e independentes do governo central. Sendo assim, esse isolamento das comunidades locais no Afeganistão, tanto por conta do território como por conta da cultura, dificultou a atuação das instituições do governo que estavam centralizadas nas capitais, e fadou ao fracasso a tentativa americana de imposição da democracia.
Em 2002 foi convocada uma Loya Jirga (reunião entre representantes da sociedade civil e líderes tribais), na qual ficou estabelecido que Karzai governaria o país por mais 18 a 24 meses, sendo os cargos ministeriais divididos entre tadjiques da Aliança do Norte. Além disso, Karzai assinou um decreto que proibia o envolvimento de líderes políticos com atividades militares, numa tentativa de limitar o poder dos senhores da guerra. Contudo, houve tentativas de negociações com os núcleos de poder locais que conduziram o governo ao nepotismo e à corrupção. O presidente Karzai foi reeleito em 2004 e em 2005 os afegãos foram às urnas depois de mais de 30 anos para eleger um parlamento.
Com a eleição de Barack Obama houve uma grande virada na dinâmica da política externa americana. A partir de 2009 não houve mais esforços por parte dos EUA para a construção do Estado afegão, não havendo mais a intenção de exportar a democracia. Apesar do aumento de tropas em solo, durante julho de 2010, foi anunciado que os Estados Unidos e a OTAN iniciariam sua retirada, fazendo uma transferência paulatina do controle da situação para o Estado afegão. Todavia, as eleições afegãs tanto de 2009 e 2010, quanto às de 2014 foram marcadas por baixo comparecimento às urnas, crise de legitimidade e acusações de fraudes. Visto isso, em 2014, os candidatos Ashraf Ghani e Abdullah reivindicaram simultaneamente a vitória das eleições presidenciais. Para resolver esse problema, foi feito um acordo em que Ashraf assumiu a presidência e um segundo cargo de oficial-chefe executivo foi criado para o outro candidato. Sendo assim, o afastamento dos Estados Unidos do Afeganistão não foi acompanhado por uma melhora na estabilidade política e na independência institucional do país, mas bem pelo contrário, aconteceu ao mesmo tempo em que se aumentavam as instabilidades e se corrompiam as instituições.
Dando continuidade a retirada das tropas e a transferência das responsabilidades ao governo afegão, o presidente Donald Trump deu início às negociações com o Talibã para pôr um fim na guerra. Para tanto, o presidente enviou Zalmay Khalilzad para negociar com o grupo em Doha, no Catar, entretanto o acordo só evoluiu quando Trump aceitou a exigência de retirar o governo afegão das negociações. Por fim, ficou estabelecido um prazo de 14 meses para a retirada das tropas americanas e foi prometido que os EUA suspenderiam sanções impostas ao Talibã, de modo que foram libertos mais de 5 mil prisioneiros do grupo no Afeganistão. Com isso, o Talibã concordou em não proteger nenhum grupo que representasse uma ameaça aos Estados Unidos em seu território, e se comprometeu a iniciar as negociações com o governo afegão que levariam a um cessar fogo e definiriam o futuro político do país.
Dessa maneira, ao assumir o poder, Joe Biden deu prosseguimento ao acordo. Contudo, a fraqueza do governo afegão permitiu que o Talibã avançasse juntamente com a retirada das tropas americanas, de modo que o grupo chegou à capital Cabul antes do esperado, gerando caos entre a população. Ademais, o acordo de Doha foi mal articulado, de modo que não foi feita nenhuma exigência ao Talibã para que respeitasse os direitos humanos. Isso mostra a falta de preocupação dos EUA com as consequências da tomada de poder do Talibã para o povo afegão, sendo que a única exigência real do acordo foi que o grupo não protegesse outros terroristas.
Apesar da inevitabilidade da retirada das tropas e de um acordo para pôr fim na guerra, a falta de planejamento por parte dos EUA e a incapacidade do governo afegão tornaram esse processo desastroso e trágico principalmente para os cidadãos afegãos. Aqueles que acompanharam os noticiários nos últimos meses puderam observar o desespero da população sob a iminência da tomada de poder pelo Talibã, assim como o momento em que civis invadem o aeroporto de Cabul na esperança de fugir do país. Em resumo, o fracasso dos Estados Unidos reside na tentativa de construir uma democracia de maneira forçada no Afeganistão, posteriormente retirar os recursos que sustentavam essa democracia e ao fazer isso não realizar uma negociação e uma transição de poder adequada. Por fim, quem carrega as consequências é o povo afegão, que já maculado por tantas guerras, sofrerá mais uma vez sob o regime totalitário do Talibã.
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